sexta-feira, 13 de junho de 2014

Mesmo em chão arenoso, e talvez principalmente, somos autores da própria vida.

Um desabafo, uma reflexão.


A absoluta certeza (isso é quase redundante!) de não querer ter filhos é algo que sempre me acompanhou, e olha que não é fácil ficar provando que você é uma pessoa "normal", que isso não te faz menos mulher, menos humana. Até pelo fato de eu gostar de crianças, gostar de gente, a decisão sempre causou estranhamento. O que é uma chatice, diga-se de passagem. 
Mas eu carregava com propriedade esta opção, poucas foram as vezes que tive de ratificá-la para mim mesma. Em uma consulta, há bastante tempo, uma médica falou que eu era/estava muito fértil, essa informação me encheu de uma espécie de "poder", é quase uma brincadeira egóica que acontece com a gente - com nosso corpo e alma (sem a separação cartesiana). Eu tinha tudo nas mãos: a fertilidade e a decisão de não utilizá-la. 

Não sei explicar como isso funcionava ou o sentido atribuído a este afeto, mas dava uma sensação de controle, de ter "tudo", toda a feminilidade, todas as possibilidades diante de mim. 

Nos últimos meses eu passei por muitas mudanças, o movimento da vida é constante, alguns, entretanto, emergem como uma jubarte no mar tranquilo, sua vida está em um barco ali perto e você sente aquela ruptura no meio do oceano, é um susto, e você é capaz de sentir o gosto salgado que alcança a boca, que te atinge por inteiro, que te falta o ar. 


Que ironia, te falta o ar justamente quando a jubarte respira. Quando algo rompe no meio do caminho e desancora as suas certezas. 

Como ensina Sartre: somos escolha a cada instante. 
A liberdade que eu tive até hoje, parece ter sido cessada por um muro, pelo muro da facticidade. 
Sartre diz que "somos condenados à liberdade", a impressão que tenho é que toda a responsabilidade das minhas escolhas ficaram submersas no dia a dia, cujas consequências foram varridas desta inundação e apareceram agora como conchas claras na areia escura. É possível vê-las nitidamente

Em outra consulta, mais recente, fui informada sobre a necessidade médica de ser submetida à histerectomia (retirada do útero). É uma coisa maluca quando o médico fala: "você não teve filhos por opção?" 
Sim! Até agora!

Só que agora não é mais uma opção, não a opção de ter ou não filhos, existem outras formas para isso, mas sim a possibilidade de gestar.
O que discuto aqui é muito mais cru que o sentido da maternidade, é mais que isso, ou muito menos que isso se nos detivermos à beleza do cuidado com o outro. O que discuto aqui talvez seja o oposto da doação, talvez seja o egoísmo, o poder ter e não ter, por escolha. Até agora.

O empoderamento que sustentou tão contundente decisão ao longo da vida, sai de você no girar da maçaneta do consultório, e isso nada te alivia, te fragiliza por completo.

O bom é que te transporta à vida "real", podemos passar tanto tempo sem o desvelamento da importância de nossas escolhas. O sopro gritante da jubarte no mar da vida me fez mais responsável e certa de que somente nós somos autores de nossos percursos.

Eu jamais poderia me imaginar lendo vários artigos, na qualidade de paciente e não de psicóloga, sobre os aspectos psicológicos da histerectomia. 
Que pensamento prepotente. 

Curioso, para todo procedimento médico existe o TCLE, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, é muito interessante, cada palavra é análoga à situação, eu gosto muito de um dos inúmeros significados da palavra "termo", que é marco divisório, balizamento. Numa brincadeira etimológica o TCLE traz o existencialismo e a existência numa folha de papel, A vida não te permite delegar nada, você está só, você entrega por escolha (e necessidade) seu corpo aos cuidados de outra pessoa, mas a responsabilidade é sua, você a compartilha, livremente.

Ah...Sartre, bem que você avisou a todos nós que "O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo". 

E assim, fragilizada, mas viva, consciente, aguardando o mergulho da jubarte eu assinei. Sim, eu autorizo. 


Andréa Albuquerque, junho 2014

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