Este artigo visa apresentar breves considerações acerca da deficiência e da pessoa com deficiência no mundo corporativo, convidando o leitor a refletir e compartilhar idéias e caminhos para uma expressiva equidade de oportunidades no exercício do trabalho e da cidadania.
“Se você não tiver acesso à educação, se você não tiver acesso ao trabalho, você não estará incluído numa sociedade que é produtiva” (Marta Gil, socióloga).
Dados mais recentes apontam que o Brasil tem mais de 45 milhões de pessoas com deficiência. Aproximadamente ¼ dos brasileiros apresenta uma ou mais limitações que faz com que assim sejam declarados. Este percentual possibilita a reflexão de que, debruçar-se sobre este tema é, portanto, tratar de assuntos prioritariamente qualitativos, de uma minoria muito expressiva quantitativamente; justificando, ainda, a relevância de colocar luz e dar voz sobre o que fora historicamente deixado à invisibilidade e silenciado por séculos. Como explica a Dra. Linamara Rizzo Battistella (2015): “Deficiência não é uma questão da pessoa com deficiência, é uma questão de toda a sociedade”. Podemos afirmar que na periodização da história, especificamente nas idades medieval e média, as pessoas que apresentavam o que fora chamado de desvio (fossem físico, sensorial ou intelectual) eram sumariamente expelidas da sociedade, ou subjugadas à comiseração. Tal polaridade, num contexto menos radical, ainda é percebida na contemporaneidade e experimentada nas atitudes mais simples possíveis, por exemplo, quando um garçom pergunta ao vidente o que seu amigo, cego, vai pedir para o jantar; ou, trazendo para o nosso universo corporativo, a tolerância ao absenteísmo de colaboradores com deficiência. Tal realidade é ainda maior nos países ou regiões colonizados predominantemente por povos oriundos do cristianismo. Tão novas quando benéficas são iniciativas que abandonam o viés assistencialista, fomentando oportunidades igualitárias reais e o empoderamento do indivíduo, propiciando às pessoas com deficiência os sentidos de pertencer e o de ser producente. O ganho desta prática não contempla apenas um grupo, mas atinge a todos.
POR QUE É IMPORTANTE RENOMEAR? A OPORTUNIDADE PARA REFLETIR E EVOLUIR.
A
busca pela isonomia demanda, no entanto, rigor, a igualdade não omite a
diferença, justo o oposto, ela sucede da compreensão da diferença. Como ensina
Aristóteles: “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça”;
ou como tão bem define um autor desconhecido: “Não me descrimine por ser deficiente,
mas não esqueça que eu sou deficiente”.
Assim
como a legislação, o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada
evoluem e têm períodos de maturação. Nas ações de políticas públicas vale
ressaltar a criação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência (CORDE) e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa
Portadora de Deficiência (CONADE), órgãos pertencentes ao poder executivo, que
deliberam sobre a temática e seus incontáveis desdobramentos, e foram constituídos
nos anos de 1986 e 1999, respectivamente.
Até
mesmo novas denominações e nomenclaturas são incorporadas gradativamente, para
melhor atenderem aos direitos e deveres da população, pois nomear não é meramente
semântico, mas evidencia a identidade de cada indivíduo, sem nos aprofundarmos
nesta questão, podemos facilmente exemplificar como hoje nos soa agressivos os
termos retardo mental ou aleijado; mas a terminologia “deficiente”, - que hoje
já está em desuso - , foi absorvido pela sociedade em virtude do Ano
Internacional e da Década das Pessoas Deficientes, estabelecido pela ONU, em
1981. Foi trilhando este percurso, que chegamos aos termos Pessoa com Deficiência e Diversidade.
INCLUSÃO: ENTRE O FATO E O DIREITO
Avanços
mais significativos existem, mas são ainda embrionários, A situação que
vivenciamos (toda a sociedade) parece-nos ser "o meio do caminho",
entre a inclusão – tímida em muitos casos –, no campo do Direito, e a sua
prática. A Lei de Cotas tem pouco mais de duas décadas, o que é recente em
comparação à precariedade histórica da educação da pessoa com deficiência, da
inospitalidade das cidades (sobretudo no que tange ao espaço público e à
mobilidade urbana – calçadas, transporte) e da segregação, como já falamos,
tenha sido essa através do afastamento, tenha sido através do posicionamento de
indivíduo sob tutela. A Lei de Cotas teve o mérito de colocar as empresas
diante desta realidade, de posicionar, em última análise, a sociedade e o setor
produtivo em confronto com este déficit sócio histórico. Como exemplo mais
recente na garantia de direito à pessoa com deficiência temos a Lei Brasileira
de Inclusão da Pessoa com Deficiência. A lei de nº 13.146 foi sancionada em 06
de julho de 2015. Conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, é uma
vitória em muitos aspectos, mas passível de críticas severas, decorrentes dos
vetos oriundos do poder executivo, desdobramentos desta matéria serão
observados. Com intuito de nos debruçarmos sobre a questão do direito ao trabalho
e das alternativas para tornar real o conceito de inclusão, inserimos
fragmentos das leis supracitadas:
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Na lei
13.146/2015 o direito ao trabalho é tratado no capítulo VI , o qual cita (Art.
34) que a pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e
aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas, seguido dos seguintes parágrafos e orientações:
§
1o As pessoas jurídicas de direito
público, privado ou de qualquer natureza são obrigadas a garantir ambientes de
trabalho acessíveis e inclusivos.
§
2o A pessoa com deficiência tem direito,
em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a condições justas e
favoráveis de trabalho, incluindo igual remuneração por trabalho de igual
valor.
§
3o É vedada restrição ao trabalho da
pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição,
inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames
admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e
reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.
§
4o A pessoa com deficiência tem direito
à participação e ao acesso a cursos, treinamentos, educação continuada, planos
de carreira, promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo
empregador, em igualdade de oportunidades com os demais empregados.
§
5o É garantida aos trabalhadores com
deficiência acessibilidade em cursos de formação e de capacitação.
Sobre
Habilitação Profissional e Reabilitação
Profissional ressaltamos três parágrafos do Art. 36, sobre os quais
voltaremos a comentar:
§
2o A habilitação profissional
corresponde ao processo destinado a propiciar à pessoa com deficiência
aquisição de conhecimentos, habilidades e aptidões para exercício de profissão
ou de ocupação, permitindo nível suficiente de desenvolvimento profissional
para ingresso no campo de trabalho.
§
5o A habilitação profissional e a
reabilitação profissional devem ocorrer articuladas com as redes públicas e
privadas, especialmente de saúde, de ensino e de assistência social, em todos
os níveis e modalidades, em entidades de formação profissional ou diretamente
com o empregador.
§
6o A habilitação profissional pode
ocorrer em empresas por meio de prévia formalização do contrato de emprego da
pessoa com deficiência, que será considerada para o cumprimento da reserva de
vagas prevista em lei, desde que por tempo determinado e concomitante com a
inclusão profissional na empresa, observado o disposto em regulamento.
Da Inclusão da Pessoa com Deficiência no
Trabalho, reforça, por meio do art. 37., a igualdade de oportunidades com
as demais pessoas, nos termos da legislação trabalhista e previdenciária, na
qual devem ser atendidas as regras de acessibilidade, o fornecimento de
recursos de tecnologia assistiva e a adaptação razoável no ambiente de trabalho.
O QUE TEMOS COMO DESAFIO?
Entendemos
por desafio o atendimento à demanda da empregabilidade da pessoa com deficiência,
enfrentando a realidade histórica e consolidada de muitas barreiras, não apenas
transpondo-as, mas de fato rompendo com a passividade de (apenas) seguir a
legislação, para sermos autores de uma nova história da diversidade neste país,
através de iniciativas inovadoras, igualitárias, éticas e prósperas.
PROPOSTAS
Investimento
na qualificação.
Pensando
que 50% dos trabalhadores brasileiros que têm alguma deficiência estão no
estado de São Paulo e que a carência do profissional qualificado é uma situação
que impacta, muitas vezes, na dificuldade em atender a Lei de Cotas*, alternativas
como a contribuição da formação técnica do trabalhador, nos ensinos médio e
superior nas modalidades presencial e a distância, parece-nos uma ação
possível, sustentável, acessível e com importante retorno ao trabalhador, à
iniciativa privada e à sociedade no sentido mais amplo.
A
defesa desta proposta é consonante com o § 6o do Art. 36, citado na pág.7 deste
relatório.
Investimento na ciência e no avanço
tecnológico – futuro para todos
Tecer
ou fortalecer a participação na produção acadêmica parece-nos que faz muito
sentido no que diz respeito à garantia de direitos da pessoa com deficiência. Desse
modo entendemos que o desenvolvimento de tecnologias assistivas, o aporte nas
pesquisas básica, pré-clinica e clínica, o apoio à nacionalização de avanços e
de órteses e próteses, bem como equipar o desporto paralímpico são temas que
deveriam pautar o setor empresarial e receber um olhar importante do governo
quando falamos nessas iniciativas.
A
sugestão é criar a cultura de investimento do setor privado em pesquisa nas
universidades públicas onde estão as mais pulsantes e promissoras produções
científicas voltadas para a tecnologia e saúde (entendendo inclusive a saúde
como muito mais que ausência de doença), mas que sofre com a volatilidade, a
burocracia e a morosidade da aplicação de recursos públicos nas pesquisas. É
eficaz o aporte das empresas nesse segmento se acompanhado de expressivo
abatimento de impostos.
Validação das iniciativas das melhores
práticas
Atualmente
a Lei de Cotas pauta-se em aspectos numéricos da empregabilidade da pessoa com
deficiência. Não é incomum adiarmos investimentos significativos em práticas
modernas de recursos humanos para focar no cumprimento da lei. Após 26 anos da
Lei de Cotas já é tempo de valorizar a idiossincrasia do setor empresarial e
legalizar iniciativas legítimas em favor da inclusão. Este viés caminha no
campo da subjetividade do auditor fiscal, mas propomos que, com o devido rigor
na comprovação, práticas que visam o desenvolvimento e a equidade tenham o
apoio e a força da lei.
Muitas
barreiras ainda temos de superar, sejam essas arquitetônicas (de
acessibilidade) ou atitudinais, mas é olhando o futuro, de modo integral, de
forma holística, que conseguiremos dar conta das particularidades, fazendo
gestão situacional, respeitando as demandas do governo, do cenário econômico,
da cultura organizacional e da singularidade de cada colaborador.
EMPRESAS, ADESÃO AOS NOVOS TEMPOS.
Estamos certos de que
abraçar esta causa congrega pilares da governança corporativa pela visão de
futuro, sustentabilidade e lucratividade. Contextualizar a diversidade é:
1.
Apresentar as vantagens sociais e mercadológicas deste
conceito e prática;
2.
Valorizar o engajamento;
3.
Desmistificar a diversidade como algo distante de cada
um, ou como algo trabalhoso, inalcançável e caro;
4.
Apresentar ou reapresentar a multiculturalidade como
pressuposto intrínseco à humanidade que deve ser incentivado e que resulta em
mais inovação, mais criatividade, e melhor desempenho, criando um ambiente de
aprendizado constante e enriquecedor;
5.
Buscar conhecer as melhores práticas, manter contato com
pares, rever e aperfeiçoar iniciativas através da análise e operacionalização
da melhoria contínua.
As cidades brasileiras
não têm acessibilidade (nos níveis concreto e humano), a aproximação da pessoa
com deficiência ao “mundo da pessoa sem deficiência” não é fluida, ela demanda
uma força que muitas vezes falta, porque cansa lutar o tempo todo. As barreiras
encontradas estão nos espaços públicos, no transporte, na arquitetura pública e
privada, na saúde, na comunicação e informação, e no comportamento humano.
Sejamos nós, líderes
empresariais, governamentais e da sociedade civil, os arquitetos para a
reconstrução de espaço geométrico e de uma dinâmica social igualitária em
relação às oportunidades, não discriminatórias, e que compreendam -
literalmente - a diversidade e a inclusão.
É louvável toda a
iniciativa de rever posicionamentos, de reinventar-se enquanto indivíduo ou
instituição, porque responsabilizar-se é crescer, e precisamos de um Brasil
mais maduro, criativo, ético, diverso e inclusivo.
“Eu não tive tempo de ser deficiente, eu tive de sobreviver. Eu tive de ser eficiente. Fui obrigado a criar outras formas de interagir na sociedade” (Luan Luando, poeta).
Sobre a autora: Andréa é psicóloga e jornalista, foi
fundadora da Movitae, organização que trabalhou em favor da liberação das
pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. Profissional de recursos
humanos. Atua na área de desenvolvimento de pessoas nos cenários clínico e
organizacional. É portadora de distrofia muscular.
Referências bibliográficas
BASTTISTELLA , Linamara Rizzo – Programa Roda Viva, TV Cultura. 2015. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=IVhNuk47jFY
Diversidade 59 – Deficiência, Conselho Regional de Psicologia - CRP SP. 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3Q1AhTwVoI4.
Diversidade - Psicologia, Educação e Deficiência, Conselho Regional de Psicologia - CRP SP. 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=me-zJu-sQFE.
FÁVERO, Augusta Gonzaga Fávero, O direito das pessoas com deficiência – Garantia de Igualdade na Diversidade. Rio de Janeiro: WVA, 2004.
GARCIA, Vinícius Gaspar. As pessoas com deficiência na história do mundo. 2011. Bengala Legal. Disponível em http://www.bengalalegal.com/pcd-mundial.
LUIZ, André, SILVA, Joseh, ESTEVES, Mara. A periferia na visão de um poeta. Carta Capital. 2014. Disponível em http://www.cartacapital.com.br/blogs/speriferia.
Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Disponível em http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/.
SILVA, Maria Isabel, Por que a terminologia "pessoas com deficiência"? Disponível em http://www.selursocial.org.br/porque.html.
*Lei de Cotas
Conhecida como Lei de Cotas o texto trata, em verdade, do Art. 93. da Lei nº 8213/91, que Dispõe sobre a Finalidade e os Princípios Básicos da Previdência Social; determinando que a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I - até 200 empregados – 2%;
II - de 201 a 500 – 3%;
III - de 501 a 1.000 – 4%;
IV - de 1.001 em diante – 5%.
E que a dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.